Destravando sua memória: Desenhos da Cultura que ninguém se lembra
Você provavelmente já deve ter ouvido nas redes sociais algum corno usando aquela expressão manjada: “ain isso existiu mesmo, ou foi um delírio coletivo?”
animal, se tem foto é porquê existiu né?
Mas eu entendo o porquê da indagação, para quem é nostálgico, do Manchetossauro que nunca parou de babar ovo pra Jaspion à molecada geração Z que não tem nem tem idade pra lembrar de algo com nostalgia, reconhecer algo “antigo” que você havia esquecido, e compartilhar com outras pessoas que também reconhecem de imediato, é uma forma de pertencimento, de fazer parte de uma turma (ainda mais nessa época atual onde a mídia e a cultura pop se retroalimentam de nostalgia bruta, e a gente como bons trouxas iludidos, nunca paramos de financiar essa merda) pra essa galerinha, mais do que só enaltecer aquelas obras manjadas e que ninguém tem nem tempo de esquecer como He-Man, Thundercats, ou filmes do Jon Hugues, algo realmente divertido e até emocionante pra velhacos que nunca crescem (e é duro admitir, mas eu também me encaixo nesse grupo) é a prática de “destravar memórias”
Isso acontece quando você redescobre algo que não via a muito tempo, e seu cérebro tinha apagado completamente qualquer lembrança daquilo, de modo que você até dúvida se realmente viu ou se foi algum delírio ou sonho… ATÉ, você reencontrar aquilo, e a memória ser desbloqueada, o que gera imediatamente uma sensação de carinho e nostalgia MESMO que aquela obra nem seja tão antiga, mesmo que nem seja tão boa… uma lembrança destravada por vezes acaba sendo uma nostalgia mais forte do que com aquele filme ou desenho velho que você tem gravado e sempre tá revendo e portanto não tem chance de esquecer
só que… banalizaram a frase, e hoje em dia qualquer puto com menos de 20 anos chega trazendo coisa que nem é tão obscura ou antiga para ser tratada como “delírio coletivo” e já caga na brincadeira, eu já vi no meu feed gente perguntando se “existiu ou foi delírio” mostrando foto de novela da Globo de 10 anos atrás.. mano, só para!
pensando nisso, eu descobri um real poço sem fundo de obra obscura e esquecida: TV Cultura dos anos 90! Pros pseudo nostálgico, só programas como Castelo Rá-Tim-Bum e X-Tudo já vai ser uma bomba de nostalgia, mas eu vou além e desencavar coisas ainda mais escondidas aí no seu cerebelo…
Família Twist/Round The Twist
Eu já vou começar com um tão esquecido e obscuro que eu juro que não conheço NINGUÉM além de mim mesmo que já assistiu de fato essa merda! Isso não tem fã-clube, não tem páginas de discussão, é um efeito Mandela em forma de série, e eu realmente não consigo entender o porquê, já que era muito divertido e exibido na mesma época de Castelo Rá-Tim Bum (provavelmente no horário os pais preferiam ver a novela da Globo, já que pelo que eu lembre, passava lá pelas 8 da noite, então criança não tinha vez)
Era uma série Australiana baseada nos livros de Paul Jennings, num formato meio Goosebumps (sabe? aquela pegada de “Horror juvenil”), a trama acompanhava uma família que morava em um Farol assombrado e vivia enfrentando situações macabras, insólitas, ou simplesmente bizarras e escatológicas, as histórias iam desde o clássico “ajudar fantasma atormentado pra ele ter paz” à coisas mais estranhas como bebês nascendo de pé de alface, cueca que dava superpoderes (prq foi secada no microondas), controle remoto que pausava a vida real (chupa essa Click) que no final era usado pra… PASME: fazer um vilãozinho praticante de Bully comer o próprio vômito de volta usando o botão de reverse (sim, o humor infantil australiano era bem sem noção), teve originalmente duas temporadas com dublagem comandada pelo Pádua Moreira com figurinhas conhecidas como Briggs e Christiano Torreão no elenco, dublagem essa que provavelmente se perdeu com o tempo, já que tal série sequer existe legendada em qualquer lugar da internet (como eu disse: essa porra NÃO TEM UMA FANBASE!)… as duas primeiras temporadas que eram de 90 e 92, foram exibidas na integra pela Cultura… em 2000 a série voltou às TVs Australianas com um elenco totalmente diferente e histórias ainda mais insólitas, mas isso nunca nem sonhou em ser exibido aqui (mas, ironicamente chegou a fazer bastante sucesso nos EUA, demonstrando que não é uma obra tão de nicho assim) essas duas últimas temporadas já tem mais cara de série adolescente gringa (tipo as da Nickeloldeon) já usando efeitos de CG ruim, e até no tipo de fotografia, mas claro, tendo o diferencial totalmente particular da série com seus elementos bizarros e absurdos… tentei assistir essa nova fase baixando da internet, mas desisti no primeiro capítulo da terceira temporada, que já começava com um dos garotos ficando GRÁVIDO! foi bizarrice demais pra mim, prefiro as duas primeiras temporadas “clássicas”
Also, não se deixem levar pelas esquisitices citadas aqui, a série era incrível
Meena
Desenho educativo da Unicef sobre uma garotinha indiana tendo que superar as dificuldades sociais de gênero e saúde das crianças do sul da Ásia, víamos Meena lutando por coisas que pra nós seriam básicas, como garotas ter direito à educação, o direito a não ter um casamento arranjado, víamos ela lutando para construção de uma fossa pública, ensinando a fazer soro caseiro…. sabe, essas noções básicas de higiene e dignidade que tem lugar no mundo que ainda não caiu a ficha que precisa ter? muita gente lembra com muito carinho prq o tom era leve e fofo… eu lembro sentindo um pouco de raiva de tanta injustiça que a coitada tinha que engolir
Castelo De Eureka
Este talvez seja o desenho/programa que mais tenha me causado uma sensação de “isso existiu mesmo, ou eu sonhei com isso?” talvez por que eu não fosse tão fã da série, então só me restou flashs confusos da mesma, tipo os do Wolverine lembrando dos testes com a arma X, o programa era sobre uma garotinha feiticeira que vivia num castelo mágico cheio de amigos bagunceiros e… era isso, ela era como uma mãe amorosa para toda uma trupe de bonecos malucos e irritantes, sendo de longe a melhor personagem… ah é, tinha um gigante amistoso do lado de fora que dava corda no castelo porquê na visão dele, o castelo era como uma caixinha de música, eu acho que “desdenhei” deste programa justamente por que eu já estava crescendo e criando aversão por programas mais infantis, e esse (originalmente produzido pela Nickeloldeon no final dos anos 80) claramente era feito pra um público mais novo, as historinhas não iam pra lugar nenhum, metade do tempo era só de musical, e eu já era velho o bastante pra me entediar ou me irritar fácil com isso, mas agora já adulto revendo trechos avulsos no Youtube percebi que o programa era sim bastante carismático, não muito diferente de qualquer outro programa de marionetes como TV Colosso que eu adorava (minto, TV Colosso é genial até hoje)
pesquisando sobre a atração, descobri que apesar de ter sido um dos primeiros sucessos da Nickeloldeon, muito do seu material parece estar esquecido nos cofres do estúdio, uma fã americana chamada Cassandra Burke revela em seu blog que apesar de ter sido relançado recentemente em stream não teve mais do que 20 e poucos episódios (sendo que originalmente só a primeira das 3 temporadas tinha mais de 60!) e cada episódio tinha apenas 20 minutos (originalmente era uma hora) supõe-se que a atração assim como TV Colosso preenchia boa parte de sua duração com desenhos animados, ou assim como Teletubbies tinha trechos com gravações de crianças reais brincando só pra encher linguiça, então este seria o tempo total dos episódios sem esses artifícios pra esticar sua duração… mesmo assim, ao que parece, vários episódios continuam “desaparecidos”, quanto à dublagem brasileira, que tinha nomes como Marli Bortoletto e Francisco Bretas… provavelmente tá mais perdida que a própria série e tudo que restou de registro dela são os 2 ou 3 vídeos de trechos d série postados no Youtube (incluindo o linkado abaixo)
resumindo: era bobinho, mas muito fofo, hoje me arrependo de não ter assistido direito na época, e realmente é uma memória muito preciosa que eu não sabia mais que tinha
detalhe pessoal inútil: já ouviu aquela história de que você tem uma imagem mental específica para tudo que você conhece? Se alguém por exemplo fala “cadeira” você tem a SUA definição visual de cadeira na mente e etc… pois bem, nessa porra de programa os bonecos eram TARADOS por manteiga de amendoim, aquele doce que você provavelmente ouviu falar de tanto que os americanos comem isso e citam em produções audiovisuais… bom, o caso é que eu não sei se foi o primeiro lugar onde eu vi isso, só sei que… toda vez que eu ouço falar de manteiga de amendoim era essa imagem desse bicho peludo carregando trocentos potes é que me vinha a mente, pra você ver como um memória travada pode ser forte
Desenhos em Stop Motion do Glub Glub/Cocoricó
Glub Glub já deve ser uma puta memória destravada pra muita gente, quem não fica admirado ao lembrar daqueles atores com cabeça de peixe e corpos apagados em cromakey que eram na mesma proporção tão maneiros quanto eram creepys, mas tanto este programa quanto Cocoricó tinham algo em comum: um catálogo de animações bem obscuras (pra não dizer capengas), lembra do episódio dos Simpsons onde o Crusty – O Palhaço perde o contrato com Comichão e Coçadinha e dai ele é obrigado a exibir um desenhos ucranianos bizonhos sem nexo e mal animados?… bem, era quase essa sensação, apesar de que sendo justo: os desenhos eram sim divertidinhos e muito bem feitos, mas nada que qualquer um vá amar tanto a ponto de manter na memória, desses dois programas saiu muita coisa obscura em Stop Motion (provavelmente foi num deles você viu “Pingu” pela primeira vez, e hoje você só lembra porquê virou meme) mas havia outros desenhos ainda mais obscuros:
Zeca e Joca/Pat & Mat
Não há muito que dizer, é um desenho mudo em Stop Motion sobre dois carinhas atrapalhados fazendo bagunça enquanto tentam resolver problemas cotidianos, no melhor tipo de humor “Gordo e o Magro” ou qualquer comédia pastelão sem cores no início do século XX, país de origem dessa pérola? a extinta Tchecoslováquia!
Bertha
Mais um desenho em Stop Motion e que não era americano, Bertha era uma série britânica sobre uma máquina multifuncional que produzia de tudo (cê não tá entendendo, era LITERALMENTE TUDO) e acompanhava o dia a dia do inventor dela e os funcionários da fábrica interagindo entre si e resolvendo possíveis problemas (da máquina e das tralhas que ela produzia) a musiquinha de abertura fica na cabeça
OH BERTHA… QUERIDA BERTHA… VOCÊ É TUDO PARA MIM… (sim, eu acho que esse cara tá tipo o Joaquin Phoenix em Her e se apaixonou por uma gerigonça)
Babar
Um desenho que era sobre um elefante que era rei e diplomata, essencialmente era isso, a primeira temporada acompanhamos a infância de Babar, ainda morando na selva e andando de quatro, dai ele cresce, fica sofisticado, vira rei, e na segunda temporada já em sua fase adulta acompanhamos como ele se desdobra pra ser monarca e pai
Olho Vivo / Eyewitness
O que não faltava na TV Cultura além de desenho educativo obscuro era programa de ciências, muita gente vai lembrar imediatamente (e unicamente) de Beakman, mas na real tinha uma caralhada, um dos mais interessantes e digamos assim… “completos” era o “Olho Vivo” (Eyewitness) uma série que em cada capítulo pegava algo para apresentar e destrinchar ao máximo com todo tipo de informação e curiosidade sobre aquilo, se o episódio era sobre esqueleto humano por exemplo, a série falava desde suas funções motoras à simbologia de caveiras com a morte, iam da Ciência à cultura popular e com certeza já dava uma turbinada na cabecinha de várias crianças… se você cresceu assistindo à programas como esse, com certeza você não é terraplanista, nem anti-vacina e vingou como ser humano
A abertura era foda pra um caralho, escuta aí e fala se não arrepia os pelinho:
Fábulas Geométricas
Outro desenho obscuro e não americano que usava CG ruim de mil novessentos e guaraná com rolha pra adaptar contos clássicos da literatura… não lembro dentro de qual programa passava, parece ser francês
Menções Honrosas: As Aventuras de TinTim
Saído das páginas de quadrinhos franceses do Hergé, As Aventuras de Tin Tim é uma obra incrível que apesar de hoje já não ser tão obscura graças ao filme em CG do Spielberg, ainda está longe de ser um personagem mainstream, com várias aventuras de época que iam desde investigar um roubo de um artefato histórico até a… PISAR NA LUA ANTES DO NEAL ARMSTRONG, TinTim fez a minha cabeça sendo a primeira animação de “ação” que eu assisti, e continua tão bom hoje quanto era na época.
Peter Habbit
outro que na verdade vem de uma obra literária clássica que até ganhou filme recentemente (Pedro Coelho) mas dificilmente vai ter tanta gente lembrando da animação noventista e seu estilo lento, contemplativo e quase poético (muito diferente da aventura explosiva, barulheira e porra louca dos Live actions atuais) tendo inclusive uma abertura e encerramento em live action mostrando a Beatrix Potter (escritora dos livros) em seu dia a dia se inspirando e contando pessoalmente os contos, a trilha sonora é de derreter o coração e fazer qualquer marmanjo chorar:
E por hoje é só meus tiozões não crescidos e moleques que querem ter história mesmo nascendo ontem… se este artigo fizer sucesso posso pensar em trazer mais coisas obscuras num futuro, o próximo podcast que vamos gravar será do mesmo tema, espero que esse artigo tenha destravado algumas memórias adormecidas porquê pelo menos comigo, em se tratando de nostalgia não tem sensação mais gostosa (ai que delícia)