Ruptura e as Relações de Trabalho Modernas

Minha relação com Ruptura foi um pouco controversa. Tentei assistir a série há algum tempo atrás mas o primeiro episódio não me fisgou tanto, achei meio monótono, e como bem sabemos o homem moderno não está mais acostumado a esperar que algo se desenvolva para se tornar interessante – tem que ser conquistado logo de início. Porém um colega meu insistiu para que eu insistisse na série, e quando eu fiz isso eu simplesmente devorei ela. Aproveitando a chegada da nova temporada três anos depois da sua primeira temporada, resolvi escrever aqui algumas considerações que pensei ao longo da série.
Posso dizer que o chamariz de Ruptura está no (não tão) absurdo que usa para destacar o absurdo no mundo real. Quantos de nós não sentimos viver vidas separadas – a profissional e a pessoal – tentando equilibrar conflitos? A coisa mais normal do mundo é uma pessoa não gostar do próprio trabalho, apenas realizá-lo pelo instinto básico de sobrevivência em um sistema que nos impede de sermos realizados pessoalmente E profissionalmente concomitantemente. Em Ruptura, esta separação é literal. Ao invés de voltar pra casa com a cabeça atolada de coisas pensando no maldito do seu supervisor que fez uma reunião que poderia muito bem ter sido um e-mail, você simplesmente… não saberia que aconteceu.
Freud e Foucault e a definição do indivíduo
Freud disse que “amor e trabalho são os pilares da humanidade” (a parte do “amor” inclusive é bem interessante na série – mas sem spoilers aqui). Mas o que ele diria se fosse obrigado a fazer relatórios mensais analisando uma planilha de Excel de 1400 linhas? Como jornadas de trabalho 6×1 por 8 horas diárias (sem contar almoço e transporte) é um pilar que dignifica o homem? Aí entra a questão do propósito, onde muitos não têm a oportunidade de encontrar no próprio trabalho.
Foucault, por outro lado, com a sua ideia de “corpos dóceis” – indivíduos moldados e controlados por estruturas de poder – encontra uma excelente representação nas Indústrias Lumon, empresa da série. Os funcionários não são apenas monitorados, mas literalmente redefinidos pelas suas funções. O “Eu-pessoal” é descartado e o “”Eu-trabalhador” só tem uma utilidade: produção econômica. Novamente se relacionando diretamente à vida real, onde pessoas vivem para trabalhar e são definidas pelos seus trabalhos.
Rir pra não chorar
René Descartes existindo (ou não)
A separação do indivíduo levanta um questionamento moral presente a todo tempo na série. De início, eu pessoalmente, não entendia qual era o problema, afinal como comentei antes, essa separação já existe, ela só não é tão “saudável” quanto após um processo de ruptura. Mas aí que começa a distopia corporativa: qual é o preço de abdicar de metade de si para se tornar um peão no tabuleiro do capitalismo tardio? O “Eu-trabalhador” não vive, só trabalha, enquanto o “Eu-pessoal” não sabe e nem se importa.
René Descartes tem seu célebre pensamento “cogito ergo sum” subvertido na série. O “eu” que pensa durante o expediente não é o mesmo “eu” que existe fora dele. Essa fragmentação levanta o tal dilema moral da série: é possível ser completo quando se abdica de parte da experiência humana? Na Ruptura, o interno não tem escolha e muito menos existe: ele é o trabalho que faz.
Da próxima vez que seu chefe sugerir uma “integração obrigatória” ou o RH mandar um e-mail sobre “equilíbrio entre trabalho e vida pessoal” — enquanto você trabalha no fim de semana — lembrem-se de Ruptura. Talvez você não precise de um microchip para “desconectar”, mas ninguém vai te julgar se você desligar o celular e praticar a sua melhor interpretação de Descartes: “Desligo, logo existo”.
Considerações finais
Achei Ruptura uma série bem boa, acima da média, o problema é que ela me lembrou uma das minhas séries preferidas: Lost. Como sabemos, Lost é um case controverso, mas é inegável que exerceu um movimento pivotal se tratando de séries com mistérios.
Dito isso, meu receio é a série caminhar e não explicar diversos dos enigmas em aberto que citarei a seguir com spoilers:
- O que a empresa produz/faz?
- Quem produz os quadros do departamento de Optics and Design?
- Quem são as pessoas ou grupo que desbloqueia a ruptura?
- O que caralhos são aquelas cabras?
Espero de verdade que a série nos responda algumas dessas e outras perguntas, e não que diga que o escritório é o purgatório.