Pare o que você estiver fazendo e vá ouvir “Painted From Memory”, é Elvis Costello misturado com Burt Bacharach! Quer mais que isso?!

Pare o que você estiver fazendo e vá ouvir “Painted From Memory”, é Elvis Costello misturado com Burt Bacharach! Quer mais que isso?!

Agora a Ideia ficou Errada de vez: vamos falar sobre música, como se o conteúdo de banalidades daqui já não fosse o suficiente…

Mesmo não se tratando de um pedido de desculpa de nenhum desses influencers digitais subcelebridades, começarei o post com aquele velho “quem me conhece, sabe…”, e o público do Ideia Errada (um único ouvinte: Jean) sabe bem o quanto é peculiar o meu gosto musical, que se equipara a minha expertise no manejo de um software, ou seja, um idoso de 80 anos. Aliás, recomendo ouvir o  Episódio #141, sobre música.

Pois bem, hoje é dia de falar [e ouvir] “Painted From Memory”, álbum lançado lá em 1998, resultado da parceria de dois monstros da música mundial, quiçá galaxial: Burt Bacharach e Elvis Costello (a prova de que apesar da péssima culinária, EUA e Inglaterra nos compensam prestando talentos para música, e que puta talentos, hein!).

O disco é fruto de uma parceria de muito sucesso em trabalhos anteriores, e pelo que consultei, o primeiro desses no filme “Grace of My Heart” (Br: A Voz do Meu Coração), de 1996, cuja trilha sonora traz justamente uma das canções gravadas em “Painted From Memory”, a suplicante “God Give Me Strength”. Aliás, o filme tem toda uma trama musical, vale a pena conferir também.

Eu tenho um carinho especial por esse álbum primeiramente porque ele é excelente em qualidade mesmo, e a outra razão é que é um dos cd’s que eu comprava no tempo em que comecei a trabalhar. Aproveitava o horário do almoço para ‘dar um pulo’ na única loja que resistia aos tempos da modernidade ainda comercializando música de forma analógica no centro daqui de Rio Branco/AC, a saudosa Discardoso, que há alguns anos fechou para dar lugar a uma loja qualquer de confecções, infelizmente. Era uma das boas descobertas que eu fazia ao ouvir um álbum novo por lá mesmo, sob cortesia do dono do local, com quem sempre travava um papo musical muito bom, mas nem sempre tinha dinheiro para gastar comprando cd.

Particularmente nunca me atraí por trocar experiências musicais com as pessoas da minha idade na época em que eu era mais um “xofem”, tanto é que sofri mais com a perda de David Bowie do que o final da formação do One Direction (Apesar de consumir o Harry Styles, eventualmente). Portanto, essa peregrinação quase que diária me oferecia duas vantagens: ficar longe de gente da minha idade e buscar sempre algo diferente para ouvir depois de ‘bater um p.f.’ (prato feito).

Numa dessas, acabei encontrando essa joia que é “Painted From Memory”, mas não sem ter previamente referências do quão foda era Burt Bacharach nas composições (ouvindo Dionne Warwick cantando primorosamente “Walk On By“) e do talento vocal e verborrágico que detinha Elvis Costello à época (cantando “She“, a música que marcou o filme “Notting Hill”, no Brasil: Um Lugar Chamado Notting Hill). Porém, quando se junta essas duas forças da natureza, o resultado é apoteótico.

Claro que a preferência prematura pelo jazz me fez atraído de imediato ao ouvir fragmentos do álbum, porém, depois que eu comprei essa preciosidade, ouvindo naquele ritmo faixa-a-faixa, caí encantado em êxtase. O instrumentalismo óbvio e orgânico de Bucharach junto das composições do inusitadamente comedido Elvis Costello faz uma mistura para um trabalho atemporal da dupla, que já nasceu um clássico.

A montagem do álbum é primorosa, a começar pela capa, que indica um designer [olha aí, Matheus] que remete a um sentido artístico de recorrente produção daqueles vinis despretensiosos, traz cores contrastantes de um predominante laranja com letras em fonte azul marinho que enfatizam as estrelas do disco e discretamente colocam seu nome de batismo em branco, com destaque para uma fotografia em preto e branco, que mostra, ambientados num aparente estúdio, a silhueta de Costello em ‘over shoulder’, com seu característico chapéu redondo e óculos de grossa armação, ao lado de um laborioso Bacharach, que se debruçam em partituras musicais desordenadas sobre a mesa a sua frente, o registro perfeito da construção da obra. Porém confesso que não tinha esse escrutínio quando o vi pela primeira vez [a gente vai ficando velho e vai apurando a forma como se interage com a vida], nem sequer sabia o que esperava ao absorver sua totalidade [ainda bem!].

Originalmente com doze faixas, o álbum vem repleto de emoção, sentimentos de amor, solidão, e até espiritualidade. Tecnicamente impecável. Segue a lista:

  1. In Darkest Place [4:15]

Com uma linda introdução de bateria e flauta, piano marcante, essa é a música que inaugura o álbum. Destaque para a percussão, que tem seu apogeu nas viradas no decorrer da canção. O coral de apoio também vem como um colar de pérolas para fechar a música, dando-lhe uma profundidade sensorial necessária. Aqui você já percebe um Elvis Costello ‘sob mordaças’ que potencializam sua suavidade.

  1. Toledo [4:31]

O conjunto do single é absurdo, alternando numa disputa entre os instrumentos e o vocal. Temos aqui uma das músicas mais pretenciosas do álbum, deliciosamente soberba. Mais uma vez temos uma percussão bem-marcada, que acompanha a doçura dos vocais (e que cuidado com os vocais!). O tema central da música é um amor perdido, literalmente.

  1. I Still Have That Other Girl [2:44]

Abertura sensacional do piano de Bacharach, e com cordas tensionando pesado aqui, temos um colossal Costello, que estende sua performance e alcança invejáveis notas, como um lobo que uiva à luz do luar. O centro temático aqui é um amor culpado, hesitoso. Inclusive, cabe ressaltar que no ano de 1999 a música ganhou na categoria de “Melhor Vocal Pop Colaborativo” na 41ª edição do Grammy.

  1. This House Is Empty Now [5:08]

Solidão, é inegável o sentimento de abandono que traz o próprio título. O destaque vai para o baixo, formidável, com espaço para uma guitarra melodramática. O engraçado, ou irônico, é que a participação do coral acentua ainda mais a solidão temática, como se fosse de fato ecos de uma casa vazia.

  1. Tears At The Birthday Party [4:37]

Que música deliciosa! Certamente a dupla Bacharach-Costello se divertiu na composição dessa simpática canção. Aqui o talento de Bacharach transborda, pois é uma riqueza no emprego de cada instrumento, com ênfase a um saxofone destoante e insinuante. A música, por si, é um de uma ironia sem igual, basta olhar o título, dentro de um mundo de aparências.

  1. Such Unlikely Lovers [3:22]

O vocal nessa canção é o que chama mais atenção, com uma composição complexa e um coral charmoso, a música abre espaço entre um hiato e outro para os instrumentos de sopro. A canção remete ao início dos trabalhos de Bacharach, com aquelas músicas típicas dos conjuntos dos anos 60, que interpretam afinadamente enquanto executam algum tipo de coreografia. Claramente poderia fazer parte da abertura de algum filme do 007.

  1. My Thief [4:17]

A sétima faixa do álbum não é brincadeira não, vem como uma pancada melodramática. Remete muito aos arranjos de música clássica. O tema aqui é um amor que traz dessossego, angústia, inquietante. As cordas seguem acompanhando um magistral piano dobrado ou duplo. Que coisa linda! Lisa Taylor finaliza um solo de forma espetacular nesse som.

  1. The Long Division [4:11]

O álbum nos brinda aqui com a mais dançante das canções. Com uma magnifica introdução de oboé, um piano firme e constante e um baixo que amarra a consistência da melodia com os destaques que se elevam no restante dos instrumentos. A estrutura do enredo é um diálogo com o outrem amoroso, discussão, um amor que está abalado pela infidelidade ou que já acabou, mas não teve um fim.

  1. Painted From Memory [4:11]

A música tema do álbum é, de fato, uma mistura do que há de melhor entre os dois artistas que estampam a obra: lindos arranjos de Bacharach, com o seu DNA, junto de letras complexas, mas simultaneamente singelas, que permitem Costello explorar cada esquadra de sua voz. O tema da canção é a recordação de um amor que se foi, e assim está bem, há conformação na partida, pois sempre haverá a lembrança, como que se pintado em um retrato, de acordo com o próprio título da canção. O plus aí é o coral, devidamente composto como se fosse um véu dentro de toda estrutura da canção.

  1. The Sweetest Punch [4:07]

Também em um ritmo dançante, a percussão toma conta dessa bela canção, sem prescindir de notas frenéticas, porém suaves de Costello. Muito bem-marcada pelo piano de Bacharach. Seu enredo poderia se resumir a um pugilista abatido no centro da arena de boxe, vendo o seu amor triunfar no coração de outra pessoa, seguindo subjugado e consciente do golpe, mas resignado.

  1. What’s Her Name Today? [4:05]

Uma música pujante na introdução do piano, essa é a penúltima faixa do álbum. Seu centro temático é o questionamento a quem trata o amor com indiferença, ou até desprezo. É uma tese de defesa ao amor frágil, ou contra o abuso de um relacionamento tóxico.

  1. God Give Me Strength [6:10]

Eis que chegamos à última faixa do álbum. Aquela que ironicamente termina a obra, mas que foi responsável por sua criação, pois sua concepção para o filme “Grace of My Heart” (Br: A Voz do Meu Coração) fez nascer essa parceria memorável: Bacharach-Costello. Aliás, o filme de 1996 abre espaço para sua execução em uma cena bastante simples, mas com uma troca de emoções profundas entre os personagens de Illeana Douglas (Edna Buxton) e Matt Dillon (Jay Phillips) – que a meu ver uma interpretação ainda melhor que a de Costello, apesar de absurdamente cenográfica. É uma letra suplicante e desoladora. Aqui a condição humana é clara, sofrível. A recorrência ao esotérico é o que ainda sustenta a voz.

Com duração de pouco mais de 52 minutos, fazendo um balanço geral de todo álbum, fica claro, a quem conhece ambos os artistas, o ápice de suas performances, pois temos um Bacharach soberbo na utilização de sua instrumentalização musical, empregando metais e cordas protagonistas, sopros suaves, uma percussão muito bem ponderada entre a suavidade e a contundência, um piano ora discreto, ora pujante, e um Costello cometido, sem sobressaltos do tempo de juventude contestadora, com entrega moderada a cada som interpretado, contudo lançando altas notas quando uma canção lhe exige. Apesar de ser aparentemente mais Bacharach e menos Costello (se colocarmos de uma forma bem injusta), ainda assim é um casamento do excelente com o maravilhoso.

Equipe técnica:

Elvis Costello (vocais, produtor, compositor)

Burt Bacharach (piano, produtor, arranjador, maestro, compositor)

Steve Nieve (teclados, piano, piano de cauda)

Jim Keltner (bateria)

Greg Cohen (baixo)

Dean Parks (guitarra, solista)

Kevin Killen (engenheiro de gravação, mixagem)

Alan Sanderson (engenheiro assistente)

Joe Lizzi (engenheiro assistente)

Donna Taylor (vocais de apoio)

Lisa Taylor (vocais de apoio e participação vocal)

Sue-Ann Carwell (vocais de apoio)

Averill Brophy Associates (design)

William Claxton (fotografia)

Rankin (fotografia)

Achei “Painted From Memory” e ele acabou me acompanhando até agora, o CD já nem tenho mais, mas, graças a tecnologia, levo comigo para ouvir em qualquer lugar, com aqueles fonezinhos discretos (e necessários!), em qualquer ocasião, seja em momentos bons ou ruins, é música boa que emociona e faz valer o gênero humano. É uma obra atemporal e “inenjoável” aos ouvidos.

Mais uma vez, recomendo. Não à toa fiz esse post. Tire um tempo para ouvi-lo integralmente. Cada nota, cada letra, o som de cada instrumento, os vocais, ah, os vocais! Ouça aí, ouça aí.

Aliás, antes de terminar, acrescento a recomendação de audição de “The Sweetest Punch”, álbum musical de Bill Frisell, lançado em 1999, que é produto direto de “Painted From Memory”, e leva uma pegada mais jazz, para quem curte, é uma boa também.

 

Por aqui encerro para ouvir um pouco mais de “Painted From Memory”. Tchau, dinossauros.

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